domingo, 8 de dezembro de 2013

Crescer é aprender a dizer adeus para certas coisas


Cai a folha, o fruto, o dente, a chuva. Surge o tesão, as espinhas, a menstruação, o verão. Crescem o peitinho, a ansiedade, os jeitinhos e as opiniões. Mudam as formas, o clima, o corpo, as estações.
Passam as horas, os dias, alegrias e expectativas. Passa o choro de ontem, a ilusão de anteontem, o amor que se mostrava eterno no ano passado. Passa a chuva e o calor. A compulsão de comer chocolate, assistir àquele filme, ir para a balada esta noite, ficar com o gatinho que parecia especial, também passa.
Passam certas necessidades a serem colocadas a limpo. As qualidades, os defeitos, as metas e planejamentos para o próximo ano, são passados para a agenda nova.
A adolescente, viçosa e manhosa, começa a passar hidratantes na pele iluminada e batom nos lábios. Aquelas ondas tão altas concordam em se aquietar um pouco para você passar com a sua prancha para além da rebentação.
Nasce a vontade de crescer, ter a chave de casa, viajar com os amigos, entrar para a faculdade.  Conseguir o diploma e já pensar no mestrado.
Urge ir à praia, comprar biquíni novo, experimentar o bronzeador cor de mate, tomar um chope geladíssimo na hora do almoço.
Urge também criar coragem e se declarar para o professor de anatomia.  Dizer poemas em voz alta para Manoel de Barros, abraçar em sonhos os caleidoscópios de Fernando Pessoa, as reflexões de Drummond, as delicadezas transparentes de Mário Quintana.
Notam-se os traços do líder, da mocinha politizada, da rebeldia inconteste, dos iconoclastas declarados.  Registram-se os movimentos do gesto solidário, as virtudes dos ideais multiplicados. Notam-se a intransigência e a ganância dos políticos, só menor que suas falácias, tramoias e ardis.
Anoitecem as verdes querências, as antigas indulgências, as compulsões pelos porres e as ressacas. As inconsequências, saudosas irresponsabilidades, a certeza de que o universo é infinito, porém menor que a estupidez humana.
Nasce mais adiante a vontade de casar, comprar apartamento, e se não der, alugar um, de preferência na zona sul da sua cidade. Ter um filho é um desejo que nasce invariavelmente.  Vem o primogênito, então, mais parecido com um lindo bebê de borracha, que todos anseiam apertar e mordiscar.
Nasce ainda a vontade de transar com a mulher do melhor amigo, porque é proibido proibir. De escrever às escuras uma biografia não autorizada da sua vizinha, que todas as noites troca de visitantes. Seu apartamento, o porteiro comenta à boca pequena, mais  se  assemelha a  porta de bar, ostentando diuturnamente um  entra-e-sai fervilhante.
Muda o gosto pela leitura, pela música, como é legal escutar música clássica, a moda comportada, que dá lugar à irreverência fashion. Muda o corte de cabelo, a cor das mechas, o tamanho dos seios, com alguns bem vindos mililitros de silicone. O jeito de andar, de seduzir, de beijar e se apaixonar.
Mudam as exigências, as compreensões dos defeitos alheios, a semântica dos conceitos de fracasso, autoestima e amizade. Muda-se o gesto contido e egoísta para a ação coletiva. As manifestações e passeatas nas ruas.
O modo mais enérgico de acordarmos o gigante sonolento, cujo leito tem as dimensões  do Brasil. Mudam o tom e o conteúdo das reivindicações ao governo que nunca-está-nem-aí-para o povo, as demandas,  agora mais claras e incontestáveis.
Sacodem-se os projetos ainda em gestação, as poeiras do passado, as relações desbotadas, os discursos maquínicos. As poeiras dos tapetes, as roupas nos varais, as belas ancas, que dançam soltas um forró delicioso e gingado com um,  dentre os inúmeros  e afoitos pretendentes.
Aprende-se a viver mais de mansinho, a morrer sem estardalhaço, a trocar a costumeira arrogância por duas doses de humildade. A trancar mentiras feias nas gavetas da consciência. Aprende-se a buscar rotinas mais éticas, um corpo mais harmonioso, relações mais mágicas e férteis, no amor e no trabalho.
Aprende-se a dançar um tango vertiginoso, embebido em estrógenos e testosteronas que circulam sem parar pelos salões da tentação.
Se aceita o envelhecer, a memória preguiçosa, a vitalidade que decai aos pouquinhos, a comida com menos sal, porque a pressão não pode subir tanto. Tolera-se refrear a gula, alternar sonhos iridescentes por outros mais pertinentes. As perdas que doem tanto, as criticas alheias, às vezes implacáveis. As injustiças tremendas que os correios do acaso remetem sem aceitar devoluções.
Tolera-se, com tristeza, é verdade, o amigo que desistiu de você, a falsidade dos outros, a esperteza de alguns que acabam sendo flagrados, felizmente, por sua intuição em estado de alerta.
Hospeda-se a doença, às vezes insuperável, o tumor a ser extirpado, a morosidade das horas, a sucessão de exames clínicos, a austeridade do silêncio, indispensável em certas etapas da existência.
Suportam-se despedidas, longas ou curtas, abandonos inexplicáveis, o crepúsculo da vontade, em seu estágio mais débil. O lamentável definhar de sorrisos e acolhidas familiares, histórias esgarçadas pelo medo, indiferença, inveja e desamor.
Compreende-se a beleza muda e estonteante de alvoradas. As promessas da natureza, ao oferecer, a quem sabe apreciá-la, seu o hipnótico balé de pássaros e borboletas de todas as cores. A liberdade no voo das águias, a elegância das garças e girafas, o faro de panteras à espreita de pobres alvos distraídos. A amizade buliçosa dos golfinhos, cuja euforia espalha-se no mar quente e escandalosamente azul.
Descobre-se, por fim, a sabedoria embutida no verbo crescer. Nos imprescindíveis desapegos diários. Nas despedidas de hábitos inúteis, situações e pessoas.
Porque afinal constata-se que crescer também é um pouquinho isso: ir dizendo adeus para as coisas.
Via: Revista Bula

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